O MANIFESTO

As experiências diaspóricas da população negra e dos povos originários brasileiros são marcadas por movimentos de resistências, lutas e enfrentamentos às condições de racismo, violências e opressões que nos foram impostas ao longo da história e das nossas existências. O Brasil é um país conhecido por anos de comercialização de vidas alicerçadas no processo escravocrata que forjou não somente a estrutura política, econômica e jurídica da nossa sociedade, como também as relações sociais, as construções subjetivas e identitárias.

Fomos o último país do continente americano a abolir a escravidão. Até hoje, os resquícios dessa prática se fazem presente em inúmeras denúncias de trabalhos análogos à escravidão, de resistência na regulamentação e condições justas e dignas de algumas áreas profissionais, do contínuo genocídio da população indígena e negra e na destruição e desapropriação criminosa de terras.

Somos estruturalmente racistas, como nos aponta Silvio Almeida, fruto de um processo político e histórico que criou um sistema excludente marcado pelo pertencimento etnicorracial:

“Não existe racismo que não seja estrutural. Ele é um mecanismo muito complexo que cria, de um lado, vulnerabilidade, e, de outro, poder. Não existe racismo fora de uma relação de poder. Ele depende de estruturas sociais para que a discriminação continue sendo sistêmica”.

[…] “É preciso ter mecanismos estatais funcionando, mecanismos ideológicos, para reproduzir esse imaginário social sobre o comportamento de pessoas de grupos racializados. É preciso ter mecanismos jurídicos que irão estabelecer o limite do comportamento das pessoas que pertencem a determinados grupos, e é preciso também mecanismos e estruturas econômicas.”1

Nesse sentido, a população negra e indígena no Brasil são os principais alvos dessa relação de poder, de privilégios e desvantagens, de protagonismo e subalternização, constituída e sustentada pelo Estado, pelo direito, pela economia e pela ideologia. A partir de uma perspectiva eurocêntrica, CIS, heteronormativa, a sociedade racista vai se constituindo e se legitimando sobre o mito da superioridade racial, da meritocracia e de uma histórica única de caráter salvífico civilizatório, direcionada aos entendidos como inferiores e muitas vezes imposta e justificada, pelas vias da violência e da morte.

O racismo é estrutural e estruturante, é um tecnologia de opressão que se atualiza constantemente, que alimenta e é alimentado pelo capitalismo. A população negra e indígena

são diretamente atacadas, excluídas e exploradas pela lógica capitalista de domínio e acumulação. Lutar contra o racismo é inevitavelmente lutar contra o capitalismo. Como diria Malcolm X, não existe capitalismo sem racismo. Sem o fim do capitalismo não avançamos na igualdade Racial.

Nesse sentido, é urgente que as (re)existências da população indígena e negra sejam pensadas e implementadas a partir de outras narrativas, outras bocas, experiências, sexualidades, religiosidades, territórios em um processo de descolonização que reconheça e legitime suas práticas sociais, políticas e saberes construídos e organizados, nas micro e macropolíticas. Sendo também um processo educativo de resistência a partir dos nossos saberes, corpos e memórias.

O Solo é Preto e Indígena

O direito à cidade não se restringe a direitos e acesso à infraestrutura urbana, é também o direito à ressignificação da cidade em uma perspectiva mais ampla, das narrativas a representatividade, ao direito à memória e história:

O direito à cidade traz em seu núcleo a ideia fundamental de que as desigualdades e opressões – racismo, desigualdade de gênero e LGBTfobia – são determinantes e estão determinadas na produção do espaço. A imposição de padrões de segregação e violência a segmentos sociais específicos faz parte da constituição social e política dos territórios e na cidade, segundo o atual modelo de urbanização. Então a transformação radical conclamada pelo direito à cidade depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo para reformular os processos de produção do espaço.2

A produção do espaço perpassa pelo movimento coletivo de rompimento com a mercantilização do espaço urbano, fundamentado nas relações capitalistas, como também em um movimento de luta marcadas pela raça, gênero e classe. Neste sentido, por exemplo, a ressignificação de homenagens a pessoas e marcos históricos nos espaços públicos da cidade se constitui como processo importante, e tardio no Brasil, de democratização do espaço urbano a partir da lógica do pertencimento e do direito as nossas histórias.

A relação com a ancestralidade faz parte da experiência de vida e de mundo das populações indígena e negra. Nas narrativas oficiais brasileiras, foram determinados quem seriam os heróis homenageados (no masculino) e quais seriam os grupos esquecidos e/ou pagados da história. Por todo estado do Rio de Janeiro, observamos uma normalização de homenagens que enaltecem e estabelecem como referência grupos e pessoas que promoveram, e ainda promovem, a escravidão, o racismo, a tortura, o genocídio e as mais diferentes formas de violação de direitos. Nomes que fazem parte do nosso dia a dia, das nossas referências em relação ao espaço/território.

No caso da população negra e indígena, onde muitas das nossas histórias foram destruídas, e a tradição oral foi o que sustentou nossas memórias, ocupar a cidade e os territórios, em todas as suas possibilidades, é necessário para não permitir a extinção das nossas existências, do apagamento histórico através de processos de invisibilização, negação e eliminação das memórias e existências.

Pañike hon kara jombe (Nós estamos aqui há muito tempo, em Puri)

O Estado do Rio de Janeiro surgiu da invasão de vários territórios indígenas dos povos Puri, Temiminó, Guaianá, Tupinambá, Tupiniquim, Goytaká, Guaianá, entre outros3. O último registro de indígena natural do estado foi o de Joaquina Maria Pury, falecida em 1902, no atual município de Santo Antônio de Pádua, enterrada sem o direito aos rituais do seu povo4.

O Brasil é o país que mais exterminou povos originários na América- latina5, a estimativa é que dos 4 milhões de indígenas que viviam aqui a época da colonização, cerca de 3,5 milhões foram dizimados. Atualmente a população indígena ocupa em torno de 13,8% do território nacional, em uma luta constante, brutal e desleal contra os garimpos ilegais, mineradoras, latifundiários e madeireiras.

Segundo censo de 2010 (IBGE), a população indígena no estado do Rio de Janeiro era de 15.894 indígenas e na capital 6.764 indígenas. Desse total, em todo estado, 450 estão em territórios indígenas e 15.444 em cidades.

O estado do Rio de Janeiro possui 8 aldeias:

– 5 em Paraty: Arandu Mirim (Guarani), Guyraitapu/Araponga (Guarani), Itaxim Mirim (Guarani), Rio Pequeno (Guarani) e Iriri Kãnã Pataxi Üi Tanara (Pataxó);

– 1 em Angra dos Reis: Tekoa Sapukai (Guarani)

– 2 em Maricá: Céu Azul (Guarani) e Mata Verde Bonita (Guarani)

Além da Aldeia Vertical Maracanã (integrante do Programa “Minha Casa, Minha Vida”, no bairro do Estácio), temos a Teko Haw Maraká’nà (Aldeia Marakanã Rexiste) e indígenas não aldeados na Baixada Fluminense, na Rocinha e outros municípios do estado.

O Rio de Janeiro foi o maior porto do tráfico negreiro do mundo, a estimativa é que aproximadamente 2 milhões de negras e negros foram obrigados a desembarcar na cidade6. Porta de entrada dos navios vindo do continente africano, hoje, o Cais do Valongo é Patrimônio Histórico da Humanidade. A região da Pequena África – Zona Portuária do Rio – é um espaço importantíssimo de materiais arqueológicos de herança africana e possui uma comunidade remanescente de quilombo – o Quilombo da Pedra do Sal. Atualmente o estado possui 53 comunidades quilombolas reconhecidas7, em diferentes municípios.

Somos o país com maior população negra8 fora da África e o segundo no mundo, menor apenas que a Nigéria: 56% da população brasileira e 54% no estado do Rio de Janeiro se autodeclaram negra e, ao mesmo tempo, a população negra ocupa os piores índices de acesso a direitos, de mortes violentas, sobretudo impetradas pelo estado, de piores salários, de maiores percentuais de violência de gênero e obstétrica, entre outros fatores de desigualdades e injustiças sociais.

Enquanto os leões não contarem sua história, prevalecerá a versão dos caçadores.
(Provérbio Africano)

Na cidade do Rio de Janeiro, dos 358 bustos e estátuas que homenageiam personalidades consideradas importantes, apenas 32 são de personalidades negras – 3 mulheres e 29 homens – as 322 restantes são todas de pessoas brancas9. Em relação à população indígena a invisibilidade é ainda maior: a estátua de Araribóia, em Niterói, o busto do Cacique Tamoio Guaixara, em Paraty.

A estátua do Curumim, na Lagoa Rodrigo de Freitas, é a única referência da presença pré-colonial dos tamoios (sem nenhum tipo de placa informativa). Mesmo assim, é um marco genérico por se referir a uma palavra da língua tupi que significa criança ou menino. Até o nome da lagoa é um símbolo importante de apagamento: enquanto os habitantes nativos a chamavam de Sacopã, Piraguá ou Sacopenapã, o nome que persiste até hoje é o de um português, capitão do exército, Rodrigo de Freitas10.

Quantos monumentos, estátuas e nomes de rua contam a história da população negra e indígena no estado do Rio de Janeiro? Qual é a história que o estado nos conta? Temos uma política de memória democrática ou um apagamento histórico de alguns grupos?

Por onde ecoam nossas histórias?

Em Nova Iguaçu, com Mãe Beata de Yemonjá, do terreiro de Ilê Omi Ojuarô, importante liderança religiosa, escritora e ativista dos Direitos Humanos, no combate ao racismo religiosa, à homofobia e ao racismo. Em Armação dos Búzios, com Eva Maria da Conceição, do Quilombo do Rasa, benzedeira e referência no conhecimento e preparo de ervas e plantas medicinais. No Sul Fluminense, século XVI, com Aymberê um grande articulador político, mobilizou várias etnias indígenas na Confederação do Tamoios,  marco na luta e resistência dos povos originários. Em Paty do Alferes, em 1838, o ferreiro Manoel Congo, liderou um dos maiores levantes negros do estado do Rio, se tornando líder da maior revolta de escravizados ocorrida no Vale da Paraíba. Na UERJ, em 2023, com o Coletivo de estudantes indígenas, Yandé Iwí Mimbira.

As construções da cidade do Rio de Janeiro foram realizadas com o sangue, suor e saberes da população indígena e negra: além da construção de fortalezas, da reforma do Passeio Público (1831), a abertura do “Caminho Novo”, que ligava o Rio de Janeiro às regiões mineiras, foi feita a partir da utilização de trilhas indígenas, o que diminuiu a antiga viagem de 3 meses para 15 dias 11

O abastecimento de água na cidade passa pelo trabalho forçado da população indígena na construção dos Arcos da Lapa (aqueduto que trouxe água a cidade) como também, pelas mãos de André Rebouças, engenheiro negro, responsável pelo projeto de uma rede de abastecimento de água para a cidade. Junto a Luiz Gama, André Rebouças estava a frente de discussões sobre reforma agrária e a doação de terras aos ex-escravizados/as12,

Tecnologias ligadas à metalurgia, a mineração, a medicina e as técnicas de cruzamentos e aprimorando de sementes, entre outros saberes, intensamente utilizadas no Brasil, são de origem africana e indígena.

A herança indígena e africana é intensamente presente na nossa língua, na resistência da africanização com o pretoguês, como diria Lélia Gonzalez. Na arquitetura, com a presença de Adinkras – ideogramas que expressam um conhecimento de tecnologia ancestral africana. No Jongo, nas Casas de Santo e Irmandades, na capoeira… Nas nossas histórias e memórias.

Assim nos ensina o Adinkra Sankofa representado por um pássaro com a cabeça voltada para trás: ir ao passado para buscar nossas histórias, experiências e saberes; ressignificar o presente e construir o futuro.

Na multiplicidade das nossas experiências, vamos construindo processos coletivos de ampliação e consolidação de estratégias e ferramentas de desmantelamento dos pactos racistas que sustentam a sociedade brasileira, em um processo histórico e internacional, inspirado em iniciativas como a da vereadora Luana Alves do Psol, que implementou um movimento de memória e justiça racial na cidade de São Paulo – SP é solo preto e indígena – que propõe uma série de ações, como por exemplo, Projetos de Lei que buscam ressignificar e/ou realocar homenagens públicas feitas pela cidade a escravocratas e eugenistas. Assim como a iniciativa da Deputada estadual, Erica Malunguinho com a PL 404/2020  que além de proíbir homenagens a escravocratas e a eventos históricos ligados ao exercício da prática escravista, indica também que monumentos, bustos e estátuas “que prestem homenagem a escravocratas ou eventos históricos ligados a prática escravagista devem ser retirados de vias públicas e armazenados nos Museus Estaduais, para fins de preservação do patrimônio histórico”

Com a proposta de um projeto de cidades, estados e país antirracistas, propondo diversas ações dentro e fora do parlamento, com políticas de ações afirmativas, buscamos recontar a história oficial excludente, racista e discriminatória e promover a construção de um estado encharcado de muitas narrativas e saberes, de um solo que sempre foi preto e indígena.

1https://www.geledes.org.br/nao-existe-racismo-fora-de-uma-relacao-de-poder-diz-jurista/

2https://polis.org.br/direito-a-cidade/o-que-e-direito-a-cidade/

3Kandú Puri – https://twitter.com/kandupuri/status/1321964954463907840

4https://tede.ufrrj.br/jspui/bitstream/jspui/6418/2/2021%20%20Andrea%20de%20Lima%20Ribeiro%20Sales.pdf

5PAREDES, Beatriz (org). O mundo indígena na América Latina: olhares e perspectivas. São Paulo: USP, 2019

6Quando foi declarado 

7Dados da Acquilerj – Associação das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro

8Pessoas que se autodeclaram pretas e pardas.

9 Levantamento realizado pelo Instituto Cultne. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2023/05/levantamento-mostra-que-menos-de-10percent-dos-monumentos-no-rio-retratam-pessoas-negras.ghtml

10https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-03/-458-anos-do-rio-herancas-indigenas-resistem-ao-apagamento

11https://www.encontro2020.rj.anpuh.org/resources/anais/18/anpuh-rj erh2020/1599700109_ARQUIVO_297c939c05d7aec95d69a7e37adaaffd.pdf

12(CUNHA JÚNIOR, Henrique. Nós, afro-descendentes: história africana e afrodescendente na cultura brasileira. In: Jeruse Romão. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade.(Org.) História da Educação do Negro e outras histórias; Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005

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O estado do Rio de Janeiro é um Solo Preto e Indígena.

Com o objetivo de somar forças na construção de um movimento de memória, justiça racial e projeto de estado antirracista, com ações dentro e fora do parlamento, nós do mandato do Deputado Estadual Prof. Josemar, juntamente com coletivos e movimentos sociais, convidamos para construção coletiva do movimento RJ é Solo Preto e Indígena.

Você pode fazer parte desse movimento, participando dos grupos de trabalho que envolve encaminhamentos de projetos de leis, ações ligadas a Educação, atividades em territórios indígenas, de religiões de matriz africana e Quilombolas, capacitações, entre outras atividades.

  1. GT Educação Antirracista – visa debater propostas e meios de atuação para a fortalecer o debate racial e combate ao racismo nas instituições de ensino;
  2. GT Iniciativas Legislativas – Grupo de trabalho responsável por propor leis e outras iniciativas legais para a promoção da igualdade racial;
  3. GT Ações nos territórios – Grupo de trabalho que organizará atuações de combate ao racismo em diferentes locais do Estado do Rio de Janeiro;
  4. GT Formação e elaboração política – Visa unir os diferentes grupos que pensam e vivenciam a pauta racial no sentido de elaborar atividades, materiais e propostas sobre a afirmação de que o Rio de Janeiro é um Estado preto e indígena;
  5. GT Calendário e mobilização – Grupo de trabalho que proporá atividades, reuniões, eventos, em conjunto com os demais grupos e movimento sobre a pauta racial;

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